A TROCA
Como
fazia todos os dias desde que entrara para a faculdade de biologia, Carlo
levantava às cinco horas da manhã para correr. Adorava a sensação de liberdade
que a corrida lhe dava. Fazia seu alongamento, comia algo leve, vestia-se
adequadamente, colocava seus fones de ouvido e saía feliz. Ver o sol chegando
aos poucos e amarelando aquela cidade, que agora era sua também, pelo menos por
um período em sua vida, era para ele, a melhor maneira de começar seu dia.
Descobrira atrás do prédio em que morava o local ideal para correr. Era uma
linha férrea, onde os trens passavam pontualmente, por isso, de posse dos
horários, ele sabia que podia correr ali, sem perigo algum, e com a paz que
procurava. Era o seu tempo de silêncio e meditação. A música em seus ouvidos,
sempre bem alta, o vento lhe acarinhando o rosto, os cabelos e o corpo, e a
sensação única de que, naquele momento, se quisesse, poderia até voar.
Era
o final da década de 80 e tudo em sua vida ia bem, adorava o que fazia, seus
estudos e suas pesquisas eram o que lhe davam razão para continuar. Ele queria
muito se especializar em doenças raras para tentar colaborar em pesquisas que
pudessem amenizar a dor de outros.
Fora
criado em uma família tradicional de interior, além de seus pais e avós, sempre
havia tios e primos por perto. Sua ligação com seu pai era de extremo afeto. Os
dois eram muito companheiros e amigos. A parte mais difícil, quando passou na
Faculdade, foi se separar desse, que para sempre seria o seu herói. Mas o pai o
havia incentivado ao máximo e lhe dizia para pensar que era uma fase passageira
e que logo estariam juntos novamente.
Neste
dia, quando chegou a casa de pois da corrida, o telefone estava tocando. Estranhando
uma ligação àquela hora do dia, correu para atender ao telefone. Era sua mãe,
com voz preocupada, dizendo-lhe que o pai, havia sentindo-se mal durante a
noite e fora internado. Estava submetendo-se a exames naquele momento. Os
médicos ainda não haviam dito nada a ela. Ele disse que iria correndo para sua
cidade, mas a mãe disse que se fosse necessário, ela ligaria novamente, que era
para ele esperar o final de semana que logo chegaria.
E
assim foi ... Carlo apesar de muito preocupado, tentou se concentrar nos
estudos, pois estavam no final de mais um semestre.
Dias
depois, a mãe tornou a ligar pois, o diagnóstico não poderia ser pior: o pai
estava com leucemia.
Carlo
terminou as provas e trabalhos que faltavam, e foi embora para sua cidade. Dali
foi com o pai para a capital, onde havia hospitais melhores equipados para
tratamentos deste porte. Todos os exames foram refeitos e o diagnóstico se
confirmou para tristeza de todos; era mesmo a doença tão temida. O novo ano
começou em meio a quimioterapias, internações e transfusões de sangue. Carlo
não arredava o pé de perto do pai, e sempre lhe atendia com carinho e total
dedicação. O pai apenas olhava o filho com enorme carinho e muito amor. Foram
meses de tratamento e o pai ficava cada vez mais preocupado com o filho, pois
ele estava perdendo suas aulas. Carlo o acalmava dizendo que ele apenas havia
trancado sua matrícula, logo voltaria a estudar.
O
ano todo foi de tratamento intensivo, com altos e baixos. O pai às vezes
apresentava melhoras surpreendentes, outras vezes caia e desanimava de tudo. O
filho foi sua maior força; por nenhum instante deixou que ele acreditasse que
iria se recuperar.
Em
dezembro, veio o resultado que todos esperavam: a leucemia fora derrotada. O
pai estava bem novamente, agora precisaria apenas fazer os controles, à
princípio, mensais e depois tudo iria se espaçando até a alta. Foi o melhor
presente de Natal que poderiam imaginar, e com essa notícia fizeram uma bela
festa de final de ano com todos os parentes e amigos.
Novo
ano, e a volta aos estudos foi inevitável, o pai o incentivou a voltar para
terminar sua faculdade. Apesar de contrariado, Carlo se preparou e voltou à
cidade onde estudava. Se preparou novamente para àquela rotina de que tanto
gostava. Precisava voltar a correr, sentia falta de seus exercícios. E foi
assim, que no dia seguinte de sua chegada, colocou o despertador para às cinco
horas, se levantou e foi para a linha férrea correr. O som que havia escolhido
para aquele dia era um rock, muitos instrumentos, muita voz, e sempre na maior
altura, Carlo brincava que, quando estava correndo, não queria ouvir nem seus
pensamentos, apenas as canções.
E
assim foi... por estar tão agradecido, com a música tão alta, não ouviu o apito
do trem que vinha em sua direção.
O
choque foi inevitável. Ele ainda teve a sensação de estar voando, antes de se
arrebentar sobre os trilhos e ser arrastado pelo trem, que cumpria seu novo
horário....
Silvia Ferrante - 2016
Nota da autora: Esse conto foi baseado numa história que presenciei e que aconteceu há muito tempo.... A foto que ilustra, foi feita na chegada do meu trem à Lisboa-Portugal.
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