quarta-feira, 21 de junho de 2017

"Aquele dia"

                            
Hoje remexendo antigos e-mails, me deparei com um, da minha linda e querida amiga, Suia Legaspe, atriz das mais competentes, que dizia o quanto havia gostado e devorado meu livro "A Primeira Dama". Da leitura do meu livro, ela se inspirou e escreveu o conto abaixo, que reparto com vocês. É minha humilde maneira de homenageá-la.... Beijo, Suia
                                              

                    AQUELE DIA

                        Despertou cedo como de costume. Ouviu, ainda do andar de cima, ruídos diferentes no quintal. Decerto preparativos para a festa daquela noite.
                        Arrancou de uma só vez o lençol que a cobria e a camisola fresca de algodão.             Do vitrô do banheiro, escovando os dentes, conferiu o céu vulnerável de dezembro. Nuvens brancas à distância anunciavam uma manhã ensolarada, tarde abafada e talvez chuva no final do dia.
                        Esse pensamento acelerou seu coração e, destrancando a porta pesada do banheiro, atirou-se à tarefa rápida de vestir-se. Uma saia escura e rodada um pouco abaixo dos joelhos, blusinha leve sem mangas e nos pés, alpargatas de lona. Tudo muito confortável e prático para aquele dia tão atarefado.
                        Saltava os degraus da escada que estalava enquanto ela descia deslizando suavemente uma das mãos pelo corrimão de madeira escura e tão seu conhecido. (No meio da noite gostava de fazer o percurso de seu quarto até a cozinha em total escuridão em busca de um copo d'água. Ia e voltava assim, no escuro. Puro prazer. Raros momentos em que a casa toda parecia silenciar. Mas, logo vinha o estalar da escada, as batidas do relógio da parede da sala de jantar, o pai no andar de cima indo ao banheiro ou algum irmão se virando no colchão de molas...Ela então parava no meio do caminho e esperava tudo novamente silenciar.)
                        Mas, naquela manhã suas mãos ágeis sequer notaram o corrimão.
                        Da cozinha vinha o cheiro de café coado, mas a mesa não estava posta como de costume. Estava coberta com uma toalha branca e várias taças de cristal estavam alí, de bruços, secando.
                        Suspirou...
                        No escorredor de pratos alcançou uma xícara grossa de louça. Serviu-se do café ainda quente no bule e completou com o leite gordo que descansava na leiteira coberta por uma peneira de metal.
                        Entre um gole e outro saudou a todos que iam e vinham em suas tarefas. Sentiu um pequeno aperto na boca do estômago. Seu corpo, acostumado à ansiedade antes das partidas de vôlei, se colocou em prontidão. Mas, ela voltou ao seu controle: - Não, hoje não haveria nenhuma decisão de campeonato ou jogo intermunicipal. Relaxou.
                        Lembrou-se do aviso da gentil senhora que comandava o clube onde jogava: - Venha bem cedo a minha casa e colheremos juntas as rosas mais frescas e firmes.
                        Não pensou em mais nada. Como atleta que era saiu em disparada em busca das flores prometidas. Foi recebida pela própria dona da casa que a conduziu aos roseirais que ficavam atrás de sua mansão. A visão era surpreendente!  Por mais que comentassem na pequena cidade  o quanto aqueles jardins eram extravagantes, jamais seria o mesmo que presenciar aquela dama, de tesouras em punho, acariciar e balbuciar palavras de amor enquanto agilmente colhia seu prometido ramalhete.
                        Dona Rosinha, assim era chamada essa dama, que cultuava e cultivava rosas. Escolheu para ela rosas cor de rosa. Como se quisesse afirmar através da cor e do substantivo seu próprio nome. Mas, a jovem aflita, nada percebeu.
                        Abraçada a seu ramalhete atravessou rapidamente a avenida principal e chegando à casa foi direto ao tanque procurar por baldes de flandres. Deixou alí, emergidas em água fresca, na sombra, as rosas rosas.
                        O telefone preto e pesado tocou forte o dia todo no escritório da casa. Amigos e parentes  ligavam para saber os últimos detalhes.
                        A tia chegou da cidade vizinha num carro grande trazendo, além dos filhos e marido, várias latas com doces feitos por ela mesma durante longas madrugadas. E roscas. Roscas trançadas e descansadas sobre uma mesa coberta por finas toalhas bordadas que espantavam as moscas, mas não resistiam aos pequenos beliscões das crianças gulosas.
                        E assim, ao sabor das horas compartilhadas a casa ia se ornamentando. Mobília  extra, como mesas e cadeiras iam sendo espalhadas nos quintais,salões e até mesmo no corredor amplo que ficava entra a casa e a garagem.
                        Para esse dia todos trabalharam muito e a casa então se abriu como fazia sempre nos seus grandes dias. Alí caberiam todos: ao redor das mesas fartas, confortáveis nos colchões preparados nos vários quartos que se entreligavam, no riso franco, no abraço familiar.
                        O sol já começava a alaranjar as paredes amarelas da casa e ela continuava com um pano úmido a limpar as mesas e cadeiras de armar que haviam alugado.
                        Seu tio, já de terno e brilhantina nos cabelos e bigodes, veio ao seu encontro no quintal. Mostrando as chaves do carro disse: - Cicinha, já está quase na hora de sairmos. Você precisa se arrumar!
                        Ela deixou de lado o pano de limpeza e correu escada acima para o banheiro. O chuveiro nem teve tempo de esquentar a água e ela já havia se ensaboado da cabeça aos pés e se enxaguado! Com a mesma rapidez secou-se, vestiu o vestido que estava desde há alguns dias pendurado num cabide em seu guarda roupas, fechou o zíper nas costas, calçou os sapatos brancos de saltos não muito altos e, na frente do pequeno espelho do banheiro, passou rapidamente o pente pelos cabelos sempre curtos enquanto coloria os lábios com o primeiro baton que encontrou por ali. Pensou em lixar as unhas, mas seu tio, já dentro do carro, buzinava acelerando-a.
                        Essa foi a última vez que saltitou pelos degraus daquela escada deslizando a mão direita pelo corrimão...
                        Na volta para aquela casa já seria outra mulher, com outros desejos e outras inquietações.
                        Afinal, aquele era o dia do seu casamento.


                                                                                                                      Suia Legaspe

                                                                                  São Paulo, 17 de maio de 2014.

Foto: Silvia Ferrante


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