Hoje remexendo antigos e-mails, me deparei com um, da minha linda e querida amiga, Suia Legaspe, atriz das mais competentes, que dizia o quanto havia gostado e devorado meu livro "A Primeira Dama". Da leitura do meu livro, ela se inspirou e escreveu o conto abaixo, que reparto com vocês. É minha humilde maneira de homenageá-la.... Beijo, Suia
AQUELE DIA
Despertou cedo como de costume. Ouviu, ainda do andar de cima, ruídos diferentes no quintal. Decerto preparativos para a festa daquela noite.
Arrancou de uma só vez o
lençol que a cobria e a camisola fresca de algodão. Do vitrô do banheiro, escovando os dentes, conferiu o céu
vulnerável de dezembro. Nuvens brancas à distância anunciavam uma manhã
ensolarada, tarde abafada e talvez chuva no final do dia.
Esse pensamento acelerou
seu coração e, destrancando a porta pesada do banheiro, atirou-se à tarefa
rápida de vestir-se. Uma saia escura e rodada um pouco abaixo dos joelhos,
blusinha leve sem mangas e nos pés, alpargatas de lona. Tudo muito confortável
e prático para aquele dia tão atarefado.
Saltava os degraus da
escada que estalava enquanto ela descia deslizando suavemente uma das mãos pelo
corrimão de madeira escura e tão seu conhecido. (No meio da noite gostava de
fazer o percurso de seu quarto até a cozinha em total escuridão em busca de um
copo d'água. Ia e voltava assim, no escuro. Puro prazer. Raros momentos em que
a casa toda parecia silenciar. Mas, logo vinha o estalar da escada, as batidas
do relógio da parede da sala de jantar, o pai no andar de cima indo ao banheiro
ou algum irmão se virando no colchão de molas...Ela então parava no meio do
caminho e esperava tudo novamente silenciar.)
Mas, naquela manhã suas
mãos ágeis sequer notaram o corrimão.
Da cozinha vinha o
cheiro de café coado, mas a mesa não estava posta como de costume. Estava
coberta com uma toalha branca e várias taças de cristal estavam alí, de bruços,
secando.
Suspirou...
No escorredor de pratos
alcançou uma xícara grossa de louça. Serviu-se do café ainda quente no bule e
completou com o leite gordo que descansava na leiteira coberta por uma peneira
de metal.
Entre um gole e outro
saudou a todos que iam e vinham em suas tarefas. Sentiu um pequeno aperto na
boca do estômago. Seu corpo, acostumado à ansiedade antes das partidas de
vôlei, se colocou em prontidão. Mas, ela voltou ao seu controle: - Não, hoje
não haveria nenhuma decisão de campeonato ou jogo intermunicipal. Relaxou.
Lembrou-se do aviso da
gentil senhora que comandava o clube onde jogava: - Venha bem cedo a minha casa
e colheremos juntas as rosas mais frescas e firmes.
Não pensou em mais nada.
Como atleta que era saiu em disparada em busca das flores prometidas. Foi
recebida pela própria dona da casa que a conduziu aos roseirais que ficavam
atrás de sua mansão. A visão era surpreendente! Por mais que comentassem na pequena cidade o quanto aqueles jardins eram extravagantes,
jamais seria o mesmo que presenciar aquela dama, de tesouras em punho,
acariciar e balbuciar palavras de amor enquanto agilmente colhia seu prometido
ramalhete.
Dona Rosinha, assim era
chamada essa dama, que cultuava e cultivava rosas. Escolheu para ela rosas cor
de rosa. Como se quisesse afirmar através da cor e do substantivo seu próprio
nome. Mas, a jovem aflita, nada percebeu.
Abraçada a seu ramalhete
atravessou rapidamente a avenida principal e chegando à casa foi direto ao
tanque procurar por baldes de flandres. Deixou alí, emergidas em água fresca,
na sombra, as rosas rosas.
O telefone preto e
pesado tocou forte o dia todo no escritório da casa. Amigos e parentes ligavam para saber os últimos detalhes.
A tia chegou da cidade
vizinha num carro grande trazendo, além dos filhos e marido, várias latas com
doces feitos por ela mesma durante longas madrugadas. E roscas. Roscas
trançadas e descansadas sobre uma mesa coberta por finas toalhas bordadas que
espantavam as moscas, mas não resistiam aos pequenos beliscões das crianças
gulosas.
E assim, ao sabor das
horas compartilhadas a casa ia se ornamentando. Mobília extra, como mesas e cadeiras iam sendo espalhadas
nos quintais,salões e até mesmo no corredor amplo que ficava entra a casa e a
garagem.
Para esse dia todos trabalharam
muito e a casa então se abriu como fazia sempre nos seus grandes dias. Alí
caberiam todos: ao redor das mesas fartas, confortáveis nos colchões preparados
nos vários quartos que se entreligavam, no riso franco, no abraço familiar.
O sol já começava a
alaranjar as paredes amarelas da casa e ela continuava com um pano úmido a limpar
as mesas e cadeiras de armar que haviam alugado.
Seu tio, já de terno e
brilhantina nos cabelos e bigodes, veio ao seu encontro no quintal. Mostrando
as chaves do carro disse: - Cicinha, já está quase na hora de sairmos. Você
precisa se arrumar!
Ela deixou de lado o pano
de limpeza e correu escada acima para o banheiro. O chuveiro nem teve tempo de
esquentar a água e ela já havia se ensaboado da cabeça aos pés e se enxaguado!
Com a mesma rapidez secou-se, vestiu o vestido que estava desde há alguns dias
pendurado num cabide em seu guarda roupas, fechou o zíper nas costas, calçou os
sapatos brancos de saltos não muito altos e, na frente do pequeno espelho do banheiro,
passou rapidamente o pente pelos cabelos sempre curtos enquanto coloria os
lábios com o primeiro baton que encontrou por ali. Pensou em lixar as unhas,
mas seu tio, já dentro do carro, buzinava acelerando-a.
Essa foi a última vez
que saltitou pelos degraus daquela escada deslizando a mão direita pelo
corrimão...
Na volta para aquela
casa já seria outra mulher, com outros desejos e outras inquietações.
Afinal, aquele era o dia
do seu casamento.
Suia
Legaspe
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